Ao monge, mano gêmeo.
Hoje é 31 de dezembro.
Tarde azul divino.
Rede amarela.
Mar à vista próximo à cidade
onde vivo.
Acabo de ler o relato sobre
uma parte da vida de Shu Wen escrito por Xinram, jornalista chinesa, no seu
livro Enterro Celestial publicado em
2004 pela Companhia das Letras. Um amigo, a quem dedico esses comentários,
emprestou-me o livro que considero um verdadeiro presente, pois que provocou
profundas reflexões a respeito da vida, da cultura oriental, principalmente
sobre a forma de viver dos tibetanos, povo com quem esteve minha alma durante
os dias de leitura do livro.
Não é uma obra de ficção,
mas fruto do trabalho da jornalista que conheceu a personagem por causa de seu
programa de rádio sobre alguns aspectos da vida das mulheres chinesas. Uma informação de um vendedor de arroz dada à jornalista fez-se ponte entre Shu Wen e Xinran. As duas estavam agora ligadas.
Impossível ficar imune à
vida da determinada Shu Wen, médica chinesa, casada apenas há três semanas que se viu separada do marido porque, por um ideal humanitário, ele, Kejun – também
médico – fora convocado pelo Exército Popular de Libertação, durante a
revolução comunista de 1949, para servir no Tibet. Ela aguarda o retorno do
marido, mas, dois anos depois da partida, recebe a notícia de sua morte. Ao contrário
de Penélope de Ulisses - Guerra de Troia – Shu Wen, recusando-se a aceitar a triste
notícia, deixa sua “Ítaca” (Suzhou, cidade onde trabalhava) para encontrar o
amado na aparente aridez da vida tibetana.
É preciso ter coragem para
ser feliz (ou infeliz)! É preciso ter coragem para ser corajosa! É preciso ter
coragem para seguir o coração! Foi isso que Wen fez durante trinta anos,
vivendo sob o apoio de uma família nômade de quem, entre os silêncios das
estações de cada ano, assimilou os costumes tibetanos. Desse tempo retirei
alguns momentos que, mesmo fora da ordem dos acontecimentos, são lições de
sobrevivência.
Nas
montanhas sagradas os tibetanos sempre encontram o que perderam (p.
114). Wen, chinesa transformada nômade tibetana, perdera o quê? O que precisava
(re) encontrar? É provável que inicialmente tenha perdido a si própria ao se
ver no desamparo do amor. No silêncio das andanças, entretanto, reencontrou a
paz de se ter de volta. Fazendo uma associação com nossa vida é essa a
caminhada corajosa que todos nós devemos empreender em 2013 ou em qualquer ano,
dia ou hora. É na introspecção que está o segredo do autoconhecimento e do
encontro com as forças internas para que possamos dar passos largos para fora.
Por isso e para isso Wen renunciou às vozes do mundo em que vivia para
encontrar a si nas montanhas sagradas, enquanto buscava trazer para dentro o amor
que pensava haver perdido do lado de fora. Pagou para si a dívida, se é que
havia alguma.
A
vida começa na natureza e a ela retorna (p. 110). Esse princípio é
fundamental para entender os motivos pelos quais Wen perseverou na sua busca
porque a vida começa pelo amor, continua por ele e para ele retorna. O amor é elemento (natural) da natureza. Daí simplesmente continuar vivendo é uma vitória.
Para isso, no entanto, foi necessário exercitar e abrir mão dos próprios
desejos para deixar que a guiança divina operasse, ou seja, deixasse vir o que
viesse, do jeito que viesse, aceitando essa guiança que seguramente existe.
Acreditemos ou não. Queiramos ou não. Ao acolher as coisas como são abrimos as
portas para que a serenidade entre e tome assento em nossa casa interior.
Wen, ao jeito oriental – na cultura
e no sentimento religioso – “salvou-se” ao já ter sempre em si o conselho do
vendedor de arroz fermentado: viva um dia
de cada vez e os dias passarão rapidamente (p. 155). Se conseguirmos ficar
presentes em nós e no tempo que estamos vivendo, depositaremos intensidade em
nossas ações e deixaremos de ver a passagem do tempo como adversária. Essa
passagem será como uma gota de vida pingada, uma por uma, sobre os
dias-nossos-de-cada-dia; será como sementes de compreensão e de paz que
germinarão lenta e suavemente dentro de nós porque mudamos o foco do
significado do que é rápido para nós. Viver um dia de cada vez significa
desacelerar para não atrair ansiedades; acolher os cuidados que cada momento
exige. Quisesse ou não, Wen teve que aprender. Aprendendo cumpriu o que era
preciso até receber a mais linda presença de amor que qualquer pessoa gostaria de
receber:
Querida
Wen,
Se
hoje eu não retornar, outros lhe contarão o que aconteceu comigo. Por favor,
entenda e me perdoe.
Eu
te amo. Se me for permitido entrar no paraíso, farei tudo para lhe garantir uma
vida segura e repleta de paz, e esperarei por você lá. Se for para o inferno,
darei tudo o que tenho para pagar as dívidas que ambos contraímos em vida,
trabalhando para lhe dar o direito de entrar no céu quando chegar sua hora. Se
me transformar num fantasma, zelarei por você à noite e afastarei todo espírito
que venha perturbar seu descanso. Se não tiver para onde ir, eu me dissolverei
no ar e estarei com você cada vez que você respirar.
Obrigado,
meu amor.
Seu
marido, que pensa em você dia e noite,
Kejun
Enterro Celestial é um livro
que fala da busca, da espera, da renúncia e do amor! A busca pelo amor. A
espera do corpo, depois de ser deixado pelo espírito, que retornará à natureza para
alimentar outros seres. A renúncia de si mesmo para encontrar o sagrado dentro
e fora de si. O amor como o sentimento mais sagrado que une tudo o que é do céu
e da terra. O enterro celestial é a
permanência do espírito liberto, pairando na paz do amor.
Somente pela compaixão
podemos compreender profundamente o outro com suas circunstâncias. Por isso,
pela compaixão, acolhemos e entendemos que o que vem de tudo e de todos é bom e
bem. Daí o mantra tibetano da compaixão - Om mani padme hum – que paira
sobre toda a história e que nos liberta dos sofrimentos provocados por: orgulho
(reino dos deuses); inveja (reino dos guerreiros); desejo (reino humano); ignorância
(reino animal); ganância (reino dos fantasmas famintos); ódio (reino do
inferno).
Depois que Shu Wen livrou-se desses sofrimentos provavelmente foi agraciada pela
celestialidade do Amor presente na carta de Kejun. Repetiu mais uma vez: Om mani padme hum!
.
Um comentário:
Maravilha! Não conhecia o livro. Seu texto me cativou. Parabéns! Abs,
José Carlos
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