Uma Poeta no
Abismo
Em comparação com a lost generation de que foi musa Gertrude
Stein, esta nossa geração parece que tão cedo não sairá do mato em que se meteu
sem cachorro. Naquele tempo de Heminway e outros, ainda havia guerras que
atraiam jovens, por seu aspecto romântico ou idealista. Hoje, nem isso. Já não
se travam guerras; decretam-se extermínios a distância.
Também na há mais animais a caçar em
África ou alhures. Os sobreviventes foram recolhidos a reservas, para ser
observados de binóculos, em safári de jipes.
De modo que aos poetas, tão atraídos
pela Guerra Civil Espanhola, restam as guerras pessoais, as guerras dos
implacáveis mistérios e incertezas do ser. Morre-se de tédio, em cavernas que
cada um descobriu como refúgio. Mas a imaginação continua acesa. É um mundo sem
grandeza, em que o indivíduo aparece reduzido a frangalhos. Quer participar;
seus gestos se esvaem na solidão.
Sei que a Neuzamaria Kerner não
agradaria o papel de vivandeira. Por seu ímpeto sul baiano, por sua apetência
para a vida, que é uma virtude muito grapiúna, ela mereceria um lugar num dos
regimentos napoleônicos. Não para escravizar povos, decerto — senão para gastar
um pouco do ardor que a consome. Nasceu inquieta, a moça, e está mais inquieta,
agora que lhe tolhem os movimentos e a vontade, num mundo que ela não fez, como
disse o poeta Housman. O que fazer, então?
Ora,
ela faz o que todos nós, criadores, fazemos: desabafar sobre uma folha de
papel. Eis alguns dos seus gritos, que são quase jeremiadas de Evas
acorrentadas: o livre-arbitrio é substituído pelo livro-arbítrio, e este não
lhe podem calar, por ser matéria de sonho, território imune a intervenções
malignas. A arte literária talvez não mais enseje a glória e a honra a que se
referiu Machado de Assis, mas consola. É linimento e bálsamo.
Os
poemas de Neuzamaria Kerner são em geral curtos. Sua poesia tende ao monólogo,
que a faz interrogar e interrogar-se. O eu é um microcosmo em que se refletem
os mistérios e incertezas do mundo, da vida, da personalidade. O poeta trabalha
à beira do precipício. Às vezes, já tombou nele e se agarra a uma ponta de
pedra. Artes e equilibrista. Dali, condenado sempre a indagar — porque a
Prometeu acorrentaram o corpo, mas destravaram a mente e a língua —, o poeta
tenta sumarizar seus lampejos em discursos conceituais, quase aforísticos.
A
autora de O Livro-Arbítrio das Evas é
dada a jogos vocabulares que exprimem a ânsia de imprimir nota nova à dicção
poética. Ela está em busca de uma expressão, que, a essa altura, já traz toque
pessoal. “A Morte de Cinderela” é uma reflexão sobre os desencantos. Um poema
como “Barqueiro do Rio Pardo” mostra a poeta em duas viagens: a factual, que é
menos significativa, e a outra, interior, que é, de fato, significante, em que Neuzamaria está
vindo de si, de dentro de si — e traz certamente algo colhido num desses
relâmpagos em que parecemos captar uma verdade existencial.
Nessas
transmigrações, em que recorre a neologismos como forma de exprimir com mais
exatidão o que está prestes a dizer, mas ainda não foi formulado, a poeta re-inventa. E é bom que assim faça,
sinal de que há na sua poética um compromisso mais fundo que atesta uma entrega
totalizante — passaporte indispensável à descoberta da identidade que parece
perdida no vozerio do mundo, e convém encontrar para a ancoragem. Poemas como
“Raquel”, “Considerações sobre o diabo” e “Desembarga a dor”, em que vergasta a
morosidade ou apatia das consciências, nos sinalizam a poeta-plural, caixa de
tormentos, caixa igualmente de ressonâncias.
Em
“A ilha escolhida”, sobre Ilhéus, em que passou um período de sua vida,
Neuzamaria Kerner aponta o rumo árduo da
expressão por ela adotada:
Quando
me bate à porta
um
sentimento de orfandade
penso
no meu mundo conhecido
e
no meu mundo imaginado. (...)
No
poema “Aprender” ela confirma sobre o rumo árduo que segue:
(...) A letra bruta e
vazia
Para
o exercício do polimento
E
o preenchimento do verso diamante.
As
Evas tecem. Tiraram-lhes, como a nós todos, quase tudo, neste mundo que tanto
nos assombra, mas restou pequena reserva secreta de livro-arbítrio.
Hélio
Pólvora*
*Cronista,
contista, romancista, tradutor e crítico literário. É jornalista militante e
escreve semanalmente para o Jornal A Tarde (Salvador – BA). Dentre suas
obras estão, Os Galos da Aurora (1958), Noites Vivas (1971), Mar
de Azov (1986) e Xerazade (1990).
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