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domingo, 5 de abril de 2015

PREFÁCIO DE HÉLIO PÓLVORA - Uma Poeta no Abismo

Uma Poeta no Abismo

           Em comparação com a lost generation de que foi musa Gertrude Stein, esta nossa geração parece que tão cedo não sairá do mato em que se meteu sem cachorro. Naquele tempo de Heminway e outros, ainda havia guerras que atraiam jovens, por seu aspecto romântico ou idealista. Hoje, nem isso. Já não se travam guerras; decretam-se extermínios a distância.
          Também na há mais animais a caçar em África ou alhures. Os sobreviventes foram recolhidos a reservas, para ser observados de binóculos, em safári de jipes.
           De modo que aos poetas, tão atraídos pela Guerra Civil Espanhola, restam as guerras pessoais, as guerras dos implacáveis mistérios e incertezas do ser. Morre-se de tédio, em cavernas que cada um descobriu como refúgio. Mas a imaginação continua acesa. É um mundo sem grandeza, em que o indivíduo aparece reduzido a frangalhos. Quer participar; seus gestos se esvaem na solidão.
          Sei que a Neuzamaria Kerner não agradaria o papel de vivandeira. Por seu ímpeto sul baiano, por sua apetência para a vida, que é uma virtude muito grapiúna, ela mereceria um lugar num dos regimentos napoleônicos. Não para escravizar povos, decerto — senão para gastar um pouco do ardor que a consome. Nasceu inquieta, a moça, e está mais inquieta, agora que lhe tolhem os movimentos e a vontade, num mundo que ela não fez, como disse o poeta Housman. O que fazer, então?
Ora, ela faz o que todos nós, criadores, fazemos: desabafar sobre uma folha de papel. Eis alguns dos seus gritos, que são quase jeremiadas de Evas acorrentadas: o livre-arbitrio é substituído pelo livro-arbítrio, e este não lhe podem calar, por ser matéria de sonho, território imune a intervenções malignas. A arte literária talvez não mais enseje a glória e a honra a que se referiu Machado de Assis, mas consola. É linimento e bálsamo.
Os poemas de Neuzamaria Kerner são em geral curtos. Sua poesia tende ao monólogo, que a faz interrogar e interrogar-se. O eu é um microcosmo em que se refletem os mistérios e incertezas do mundo, da vida, da personalidade. O poeta trabalha à beira do precipício. Às vezes, já tombou nele e se agarra a uma ponta de pedra. Artes e equilibrista. Dali, condenado sempre a indagar — porque a Prometeu acorrentaram o corpo, mas destravaram a mente e a língua —, o poeta tenta sumarizar seus lampejos em discursos conceituais, quase aforísticos.
A autora de O Livro-Arbítrio das Evas é dada a jogos vocabulares que exprimem a ânsia de imprimir nota nova à dicção poética. Ela está em busca de uma expressão, que, a essa altura, já traz toque pessoal. “A Morte de Cinderela” é uma reflexão sobre os desencantos. Um poema como “Barqueiro do Rio Pardo” mostra a poeta em duas viagens: a factual, que é menos significativa, e a outra, interior, que é, de fato, significante, em que Neuzamaria está vindo de si, de dentro de si — e traz certamente algo colhido num desses relâmpagos em que parecemos captar uma verdade existencial. 
Nessas transmigrações, em que recorre a neologismos como forma de exprimir com mais exatidão o que está prestes a dizer, mas ainda não foi formulado,  a poeta re-inventa. E é bom que assim faça, sinal de que há na sua poética um compromisso mais fundo que atesta uma entrega totalizante — passaporte indispensável à descoberta da identidade que parece perdida no vozerio do mundo, e convém encontrar para a ancoragem. Poemas como “Raquel”, “Considerações sobre o diabo” e “Desembarga a dor”, em que vergasta a morosidade ou apatia das consciências, nos sinalizam a poeta-plural, caixa de tormentos, caixa igualmente de ressonâncias.
Em “A ilha escolhida”, sobre Ilhéus, em que passou um período de sua vida, Neuzamaria Kerner  aponta o rumo árduo da expressão por ela adotada:

Quando me bate à porta
um sentimento de orfandade
penso no meu mundo conhecido
e no meu mundo imaginado. (...)

No poema “Aprender” ela confirma sobre o rumo árduo que segue:
                        (...) A letra bruta e vazia
Para o exercício do polimento
E o preenchimento do verso diamante.

As Evas tecem. Tiraram-lhes, como a nós todos, quase tudo, neste mundo que tanto nos assombra, mas restou pequena reserva secreta de livro-arbítrio.

Hélio Pólvora*

*Cronista, contista, romancista, tradutor e crítico literário. É jornalista militante e escreve semanalmente para o Jornal A Tarde (Salvador – BA). Dentre suas obras estão, Os Galos da Aurora (1958), Noites Vivas (1971), Mar de Azov (1986) e Xerazade (1990).


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