Pequena Sabatina ao Artista
Por Fabrício Brandão
Alguém que utiliza as palavras como ponte para um entendimento sobre si mesmo certamente confere à vida ares diferenciados. Se o sopro, matéria-prima das horas, é a primeira razão de ser de qualquer um de nós, o engajamento pelo verbo expande fronteiras do pensar e agir, propondo uma passagem não menos impune pelo mundo. Deixar-se guiar palas palavras significa também tentar equilibrar naturais tensões entre o racional e o emocional. Parece ser equação que não se resolve cartesianamente na medida em que cada polo encerra componentes travestidos de individualidade.
Não há receita para apreender as epifanias de um criador. Postulados, cânones, referências, todos eles nos falam de um pensamento analítico. No entanto, vivenciar a leitura e dela retirar algo é experiência movida fortemente pelos subterrâneos de nossa consciência, ambiente regido por uma divindade que até hoje não se sabe bem quem é: a tal subjetividade.
Escrever é um agarrar-se a incertezas. É conferir ao mundo um olhar que afugenta determinismos. Um flerte constante com a dúvida e o mistério. Tarefa de mortais apenas. E a escritora Neuzamaria Kerner demonstra entender bem a dimensão desse hercúleo ofício na medida em que nos oferta sua obra. Durante toda uma vida dedicada às letras, maior parte dela tomada pela poesia, essa autora renega rótulos e classificações. Para ela, o que importa mesmo é apresentar caminhos, não estabelecer verdades. Talvez por isso não é à toa que sua criação mais recente, O Livro-arbítrio das Evas – dentro e fora do Jardim (Editus – 2014) é um momento em que se exalta a liberdade em duas perspectivas cruciais: a do criador e a do leitor.
Antes de chegar ao seu “livro-arbítrio”, Neuzamaria vivenciou saberes e sabores em publicações como Fragmentos de Cristal, Eu Bebi a Lua e A Presença do Mar na Prosa Grapiúna. Nasceu em Salvador, Bahia, e vive hoje em Vitória, no Espírito Santo. Sua trajetória de escritora também se mescla à carreira de professora, feição que marcou de modo pungente sua vida. Ajudou a fundar a Diversos Afins e agora retorna à nossa presença para falar especialmente sobre seu novo rebento literário, além de recordar passagens importantes de sua manifestação poética no mundo.
DA – Seu mais recente livro já desperta a atenção pelo título emblemático que possui. Nele, você deu voz e vez a personagens femininas silenciadas pelos seus respectivos tempos. O que há dentro e fora desse jardim mundano? O que dizer e o que calar?
NEUZAMARIA KERNER – Dentro do Jardim, há as muitas vozes abafadas das Evas que não tiveram o direito à expressão da própria alma. Fora do Jardim, por incrível que pareça, ainda existem Evas silenciadas por um mundo que começa a acordar (ufa!) para ouvir os sentimentos que brotam de almas aprisionadas. Apesar dos “alardes” femininos, ainda reina – na atualidade – o silêncio por causa de um medo ancestral: de dizer que ama e quer ser amada, de dizer que sofre, que se alegra, que tem raiva, que tem fome de justiça e direitos respeitados, que tem desejos. Como eu mesma nunca paro de me fazer perguntas, busquei nelas as respostas de que necessitava para entendê-las e me entender. Se me permite dois exemplos: Lilith, que aparece em textos da Babilônia, foi execrada de outros “ambientes” e acusada até de ser a serpente que tentou Eva (a primeira). Ela reage e se defende dizendo:
Mostro-me para sair do exílio
no qual me colocaram.
Quero que todos ouçam
a voz que de mim tiraram:
eu feria os princípios do recato,
assim foi o relato dos escribas
que me condenaram
a ser poeira do livro oficial.
no qual me colocaram.
Quero que todos ouçam
a voz que de mim tiraram:
eu feria os princípios do recato,
assim foi o relato dos escribas
que me condenaram
a ser poeira do livro oficial.
Em seguida, Eva – a que está nos Livros -, baianamente retada, me disse que Deus lhe deu o jardim e depois a expulsou por causa da natureza que Ele próprio lhe deu:
Fui Tua cria e Te louvei
Tua alma habitando em mim.
Me deste o conhecimento
da bondade, da malícia, da perícia em parir.
Não carrego culpa ou dor
dentro ou fora do jardim,
posto que onisciente
me soubeste pura e sã,
e eu Te sei meu conivente
no episódio da maçã.
Tua alma habitando em mim.
Me deste o conhecimento
da bondade, da malícia, da perícia em parir.
Não carrego culpa ou dor
dentro ou fora do jardim,
posto que onisciente
me soubeste pura e sã,
e eu Te sei meu conivente
no episódio da maçã.
As Evas não querem mais calar porque têm o livro e o arbítrio.
DA – A sua escolha por mulheres bíblicas encerra algum sentido especial?
NEUZAMARIA KERNER – A Bíblia, apesar de sempre ter sido uma fonte de inspiração, foi também o lugar da opressão feminina. Para mim, independentemente da questão religiosa – e não foi essa minha motivação para escrever – era intrigante como mulheres com histórias tão bonitas não tiveram lugares de destaque oferecidos pelos intérpretes da Bíblia. A mulher de Lot, a que virou estátua de sal, não tinha nome? Veja o que ela, Irit, me diz:
Que mal houve no meu gesto
qual meu crime, meu pecado?
Fui salgada, fui punida
apenas por ter olhado?
Olhei talvez por saudade
dos filhos que quis rever;
não foi ceticismo ou bravata
tampouco por ser voyeur.
Provoquei do comando a ira,
foi duro comigo o juiz,
mas pergunto a quem me sente
qual mãe não faria o que fiz?
qual meu crime, meu pecado?
Fui salgada, fui punida
apenas por ter olhado?
Olhei talvez por saudade
dos filhos que quis rever;
não foi ceticismo ou bravata
tampouco por ser voyeur.
Provoquei do comando a ira,
foi duro comigo o juiz,
mas pergunto a quem me sente
qual mãe não faria o que fiz?
Também sem nome foi a mulher de Putifar; mil Madalenas ou Magdalas existiam, à época, e no final virou uma sagrada confusão que no meu “inocente” olhar todas essas eram as prostitutas. Posso rir? A fala de Madalena sobre o seu encontro com o Pregador me causou profunda alegria. Que mulher corajosa para amar!
Na verdade, o sentido de tudo está na reinterpretação que dou à vida dessas mulheres porque acho injusto que fiquem relegadas ao limbo. Não foram as Evas que tornaram imperfeito esse nosso jardim. Esse jardim foi ressignificado e a ele todas nós podemos voltar porque com todas as circunstâncias que envolvem um jardim é dele e nele que nos alimentamos.
DA – As Evas do nosso tempo têm conseguido fazer do mundo um lugar menos inóspito para elas?
NEUZAMARIA KERNER – Mais ou menos. As Evas de nosso tempo estão mais conscientes do seu papel no mundo, que continua razoavelmente inóspito tanto para elas quanto para os Adãos. O feminismo – que também não é o foco desse livro – trata os textos sagrados e patriarcais dos tempos de outrora como antagonistas das mulheres e da condição feminina. Mesmo considerando que esses textos ainda influenciam a vida de muitas. No entanto, não podemos nos perder nos dois tempos: ontem e hoje. As Evas da atualidade, na maioria das culturas, são livres para explorar o que é relevante para as suas vidas e vivenciar suas próprias descobertas, como elas nos dizem nos poemas A Morte da Cinderela, Contenda, Aprendizados em Quatro Segundos, entre outros. Elas querem o amor em toda a sua plenitude e no sentido mais puro da palavra, mas rejeitam a cruz que foi imposta (ou auto-imposta) em algum momento da nossa história. Por isso Tereza de Ávila, a santa, veio espontaneamente ser uma das Evas do livro.
De tu
– não sei bem o que querias –
mas meu coração, Tereza,
não pode ser só de Jesus
e nem quero por alegria
as dores da Santa Cruz.
Sei que me sabes, Tereza,
pois que me vistes mergulhar
em olhos de mar nascidos
nos claros da luz solar.
De um outro anjo lanceiro
– qual teu poeta João –
recebi o que poucos entendem:
o prazer de ficar na prisão
– não sei bem o que querias –
mas meu coração, Tereza,
não pode ser só de Jesus
e nem quero por alegria
as dores da Santa Cruz.
Sei que me sabes, Tereza,
pois que me vistes mergulhar
em olhos de mar nascidos
nos claros da luz solar.
De um outro anjo lanceiro
– qual teu poeta João –
recebi o que poucos entendem:
o prazer de ficar na prisão
É dentro da poesia que o mundo é menos inóspito.
DA – Quantas falas cabem na verdade de um poeta?
NEUZAMARIA KERNER – Muitas falas! As do próprio poeta e as dos outros (que são muitos), incluindo os invisíveis para o que chamamos de realidade. A fala poética não é feita somente de palavras escritas com lápis depois de pensadas, mas também das palavras sonhadas que o poeta transforma em sua realidade e sua verdade, posto que esta pode ser relativa porque depende da perspectiva de cada um. Por isso Rebeca – em sua fala – nos pergunta: quantas falas cabem numa verdade?
Permanentemente o ser humano, que pensa muito e investiga, busca a verdade que lhe alimente, pois sempre questiona o que foi estabelecido pela sociedade, e nem sempre fica satisfeito com o que tem nas mãos; o que está posto. Por isso acolhe muito facilmente o que lhe vem na imaginação e transforma numa fala real. Por isso, como no poema Anjo no Espelho, não há muitas preocupações com as verdades das falas porque…
(…) Como poeta
me atrevo ao desrigor da razão
e não busco o enigma inominante
que exubera nesse espelho frente a mim…
Apenas me alimento dessa fonte de inspiração.
(…)
me atrevo ao desrigor da razão
e não busco o enigma inominante
que exubera nesse espelho frente a mim…
Apenas me alimento dessa fonte de inspiração.
(…)
DA – Além do percurso denso e íntimo pelo universo feminino, seu livro-arbítrio se dedica a outras paisagens e observações. Tem-se a sensação de que nele você consolida toda uma trajetória poética. Quais reflexões você vislumbra nisso?
NEUZAMARIA KERNER – É verdade que além do universo feminino os poemas e os contos no final do livro se ampliam pelo universo onde habita o ser humano com suas alegrias, tristezas, reflexões, certezas, dúvidas e celebração da vida acima de tudo, mesmo quando há turbulências na caminhada de cada um de nós, homens e mulheres. Das reflexões feitas tomamos a consciência de que somos parte de tudo o que forma a comunidade global. E só pensar nisso já é algo poético. Ser tudo e parte de tudo.
O que talvez consolide – como você diz – uma trajetória poética seja mais a consolidação da maturidade que vem sendo construída pouco a pouco. É dentro dessa maturidade que reencontramos a ligação da nossa alma com a alma do mundo, daí os reflexos dessa consciência (paradoxal) de sermos felizes, mas também angustiados e, para mim, a única forma de dizer desses sentimentos é poemando – até na prosa. No pequeno conto O Livro-arbítrio é possível ver uma prosa poética sofrida de alguém que viaja provavelmente de um plano para outro a fim de encontrar uma pessoa. Há poesia densa nas falas ditas e nas subjetividades da situação. Repare:
E eu que vim de tão longe para vê-lo… E eu que atravessei tantas nuvens para vê-lo. Sabe quantas eternidades furei para chegar no lugar exato onde você estaria para me encontrar? Pareço em atrasos. Pereço nos prazos, só pareço. Aqui estou diante da boca dos favos de beijos que nos tempos passados você prometeu. Vim pegá-los. Vim colocá-los neste corpo almado que ainda é seu.
Cheguei! Vim com livro e com liberdade. O livro-arbítrio meu. (…)
Se há, então, realmente algo consolidado, é a poesia que existe na vida e na morte. Aqui e acolá. Só não enxergamos essas diversas realidades porque ficamos em estado sonambúlico e não damos ouvidos aos anseios de nossa alma, que tem um vislumbre diferente do ser puramente carnal.
DA – A presença de um componente místico é algo que, de alguma forma, sempre permeou seus versos. Percebe isso como um possível sentido de transcendência?
NEUZAMARIA KERNER – Sim. É isso que busco para minha vida e que aparece nos meus textos (mesmo quando não está explícito). O sentido da minha existência está na busca de tudo o que transcende a experiência da carne. Creio realmente que somos tudo. Arte e parte de tudo, entendendo que não estamos entregues a um destino sem direção, pois que caminhamos dentro de uma perspectiva iluminadora: lúmen na dor de viver! Porém quando eu falo a palavra “dor”, não a imagino como des-graça, mas no exercício de aprender a viver entremundos e entretudos, buscando acordar as forças da vida universal que moram dentro de nós. Todos os seres se comunicando e intercambiando a seiva cósmica em harmonia e em movimento na plenitude de um Amor maior que nos acolhe e nos embala. Todos os seres sentem dor para crescer, pensar, mudar, evoluir… é como adquirir condicionamento físico por meio da ginástica. Isso se aprende vivendo, errando, acertando, consertando, doendo, mas sempre vivendo aqui ou acolá.
Voltando um pouco à coisa da dor – simbólica ou não – de que falei, há um poema chamado Contenda onde está dito que remo e navio navegam, mas o remo funciona como um chicote que espanca o mar. Em verdade, chicote que espanca é o mesmo que faz com que a navegação (vida) aconteça.
Também o sentido de transcendência está bastante acentuado no poema Passageiro nas Catedrais. O personagem, digamos assim, nos apresenta uma realidade que pode ser percebida através dos sentidos (vários) e que independe de um mundo a que chamamos natural. Outra realidade. Uma situação de intermitência em idas e voltas, transpondo barreiras, tempos, espaços… O verbo transcender (transitivo direto e indireto ao mesmo tempo) – já que estamos falando de transcendência – exige dois complementos e, mal comparando, esse personagem para existir necessita de várias realidades as quais nunca buscamos entender direito. Assim é como o meu texto que faz com que eu me entenda a partir de realidades múltiplas, buscando todos os sentidos possíveis, incluindo o sentido místico em tudo.
(…) Sou viajeiro
passageiro nas catedrais
que permanecerão nas lembranças
……………….nas ruínas
……………….nas reformas
dos tempos que me levam para a próxima catedral
até quando for mudado
o meu estado de matéria
(…)
Mas sei que a distância entre as catedrais
e meu destino
se encurta e me alonga por igual…
afinal é para isso que tenho viajado
de catedral em catedral.
passageiro nas catedrais
que permanecerão nas lembranças
……………….nas ruínas
……………….nas reformas
dos tempos que me levam para a próxima catedral
até quando for mudado
o meu estado de matéria
(…)
Mas sei que a distância entre as catedrais
e meu destino
se encurta e me alonga por igual…
afinal é para isso que tenho viajado
de catedral em catedral.
DA – Você é acometida pelo que chamam de angústia da criação?
NEUZAMARIA KERNER – Muito raramente eu sinto essa angústia de que falam sobre o ato de criar. Quem escreve, recria realidades, formata o que não tem forma dentro de certo caos porque às vezes o texto começa pelo meio ou pelo fim do pensamento e é preciso reordená-lo. Às vezes dá uma sensação de vazio quando busco uma palavra e vejo que as que me vêm à mente não se encaixam no que estou querendo dizer porque é muito importante dar sentido ao sem-sentido aparentemente. A palavra específica que não vem na hora da necessidade dá uma ligeira aflição. Num outro momento, quando termino um texto, vem uma sensação de esvaziamento e alívio como de uma necessidade fisiológica. Em outras vezes, quando tenho uma vaga ideia do que quero escrever e não escrevo, sinto uma espécie de ausência, de alguma coisa que precisa ser preenchida. Se sinto uma urgência em extravasar algo, escrevo onde estiver e a hora que for… O problema é que estou sempre extravasando (risos), inclusive dentro dos sonhos. Sonho muito. De verdade. Dormindo. Muitos textos vêm desses momentos. Frases soltas, uma palavra que fica pulsando repetidamente. Às vezes acordo e escrevo a ideia ou a palavra, o que vier, mas não dou ousadia ao sonho em me tirar o sono pra não viciar. Volto a dormir.
Venho escrevendo um livro de pequenos contos onde o personagem é uma espécie de andarilho. Há vários dias que ele não fala comigo, não me diz aonde vai parar, com quem vai se encontrar, sobre o que vai conversar. Nada… Ele me olha e eu o olho de volta. Estamos tendo paciência um com o outro e acho isso muito interessante… Essa calma, mas o dia inteiro eu penso nele cheio de silêncios. Sinto inquietação por isso, mas não angústia. Se eu tivesse me comprometido com alguém que me desse prazo, talvez eu sentisse a angústia para criar obrigatoriamente uma realidade a qualquer custo. Mas os prazos são comigo mesma e sempre negocio.
Segundo alguns textos religiosos, Deus criou o mundo em sete dias. Foi de uma rapidez formidável! Provavelmente tinha pressa, mas tenho certeza de que não sentiu angústia. Já pensou em um Deus angustiado? Se ele teve angústia, deve ter sido ao criar o ser humano cheio de complexidades. Claro que não estou me comparando com Deus, mas, com certeza, aprendi com Ele a paciência, daí não crio dentro da angústia.
DA – Durante algum tempo, você esteve envolvida com projetos de formação de leitura. O que dizer dessa experiência? Inciativas desse porte podem mudar efetivamente nossa realidade?
NEUZAMARIA KERNER – Trabalhei com projetos de leitura em várias instituições de ensino, mas ainda continuo, de maneira informal, falando da importância de ler. Continuo falando sobre leitura, produzindo leitura e motivando para a leitura quando presenteio as pessoas com livros.
Atuei no PROLER (UESC) fazendo oficinas de literatura e transcodificação da leitura; também em projetos sociais como voluntária, alfabetizando jovens e adultos através de textos verbais e não-verbais. Durante todo o tempo em que estive como professora, meu olhar sempre esteve voltado para apresentar a leitura como “objeto de consumo” indispensável que deve ser repartido para que a leitura de textos diversos sempre estivesse enriquecendo a viagem que cada um faz para dentro de si próprio e na amplidão do mundo. Em todas as escolas (do Ensino Fundamental ao Superior) por onde passei meu trabalho foi sempre pautado, antes de tudo, na formação de leitores.
Não foi muito fácil em muitas instituições porque revalorizar a leitura na sala de aula ainda é coisa que fica no papel. No discurso. Na prática é diferente porque é necessário ampliar a carga horária dos professores – principalmente de Língua Portuguesa, Literatura e Redação -, mas as escolas não podem ou não querem investir. Posso dar dois exemplos?
Eu dava aula de Língua Portuguesa numa Faculdade no curso de Comunicação Social (Publicidade e Propaganda), que contemplava na ementa leituras de textos diversos. Levei para os alunos do 1º período uma revista com a propaganda de um automóvel, na qual Narciso, o do mito, aparecia debruçado olhando um carro dentro do lago. No canto inferior direito da página estava escrito assim: “Vectra, o mais bonito!”. Os 27 alunos disseram que o “cara” estava chorando porque o carro dele havia caído na água. Na verdade, quem chorava era eu ao ouvir essa interpretação. Imediatamente dramatizei o mito, distribuí textos com outros mitos para leitura. Acredite que alguns alunos queixaram-se à diretoria e fui chamada para explicações. A diretora acadêmica, uma bióloga (que Deus a tenha lá), me fez repetir três vezes o nome da minha disciplina e, em seguida, me disse três vezes: “atenha-se à sua disciplina”. Peremptoriamente. Isso na presença dos meus alunos.
Nem tudo foi tão terrível assim. Vivi experiências espetaculares trabalhando com formação de leitores, incluindo os que estavam ainda sendo alfabetizados. No sul da Bahia, perto de São João do Paraíso, havia um lugarejo chamado Vila Nova Esperança. Eu trabalhava no Programa de Alfabetização Solidária e, ao passar do ônibus na BR-101 vi, sob tendas de pau e plástico preto, homens, mulheres e crianças quebrando pedra (brita) com martelo. À noite, na sala de aula notei que o caderno de um aluno estava manchado de vermelho. Era o sangue dos dedos de um dos quebradores de pedra que escorria enquanto aprendia a escrever. Tristeza e alegria se misturaram às lágrimas. Daí o poema Quebradores de Pedra em Vila Nova Esperança:
(…)
Escola – mágica mutação:
martelolápis
sanguetinta
pedrapapel
pedregulholetra
que saltam da pedreira
para deixar o aprendiz escrever sua história.
Escola – mágica mutação:
martelolápis
sanguetinta
pedrapapel
pedregulholetra
que saltam da pedreira
para deixar o aprendiz escrever sua história.
Também foi desse tempo o poema Barqueiros do Rio Pardo, quando para chegar à escola, saltava na BR, descia o ladeirão e o barqueiro levava para a outra margem do rio (a terceira?). Era um sacrifício, mas as experiências vividas valeram. Os resultados obtidos também. Então, toda iniciativa é válida desde que a vontade de dar certo seja maior do que simplesmente a espera do salário, mesmo atrasado. Quando o governo pagava era outra alegria.
DA – Depois de tantas travessias, de que modo a sua lida com as palavras lhe permite olhar o mundo hoje?
NEUZAMARIA KERNER – Com muito mais cuidado. Hoje tenho maior consciência do espaço – vazio – que há entre a minha boca e o ouvido do outro. Nesse espaço o interlocutor pode preencher com o que quiser, de acordo com suas carências e iluminações. Por isso o cuidado, principalmente uma pessoa muito extrovertida e desatenta como naturalmente sou. Dá um cansaço essa vigilância permanente porque a palavra, o Verbo do Princípio, deveria ser sempre fonte de união e completude universal, mas nós nos esquecemos disso no momento em que usamos palavras não como ponte, mas como marreta que arrebenta tudo aquilo que pode nos ligar ao mundo. Pode ser também como armadilha na qual podemos cair ou jogar os outros, daí o cuidado. Por exemplo, no poema Jogo eu falo da palavra como num jogo de xadrez:
(…) Quando tomam vestes guerreiras
me aprisionam
me checam e matam.
me aprisionam
me checam e matam.
Por outro lado, pela palavra nos comunicamos e estamos em comunhão o tempo inteiro, é a senha da vida, do mundo, como dizia Drummond em Palavra Mágica.
As palavras estão aí para nos servir, como Exu, o mensageiro dos caminhos, que não é nem bom nem mau, depende da energia que imprimimos nos comandos que a ele damos. Assim também com as palavras, daí eu ter falado na vigilância permanente. Até que eu me esforço, mas como tropeço!