Há muitos anos, nem lembro mais quando, andando pela Av. Sete de Setembro, em Salvador (BA), meus olhos viram uma luz enfeitando toda a calçada coalhada de ambulantes, passantes, artesãos... Era um poema-postal, imenso, encostado junto a um rapaz que, sentado tranquilamente, fazia brincos, pulseiras, anéis, colares e toda a sorte de preciosidades que só os artesãos sabem fazer.
Li o poema do postal e fui sendo tomada por uma espécie de maravilhamento. Naquela hora tive a certeza de que havia marcado um encontro com alguém que faria parte da minha vida para sempre. Não estava em sua forma humana como normalmente vemos o outro. Era Damário Dacruz, em forma de alma, levitando palavras. Era o poema da imagem acima. Não tive medo dos caminhos e arrisquei perguntar se estava à venda. Não esperava uma negativa. Foi. Perguntei se, pelo menos, poderia copiar. Sim.
TODO RISCO
A possibilidade
de arriscar
é que nos faz homens.
Vôo perfeito
no espaço que criamos.
Ninguém decide
sobre os passos
que evitamos.
Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos.
Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos.
Depois de copiado, apressadamente, em meio aos empurrões do povo que passava, supliquei ao rapaz que me vendesse, mas ele, na forma serena que os hippies artesãos têm de falar, respondeu-me: nas livrarias tem. Saí dali caçando o tesouro em todos os lugares. Nada. Então passei a copiar o poema nos meus cadernos, a mimar os meus amigos depositando em suas mãos o Todo Risco do poeta. Eu amava Damário abertamente e ele nem sabia. Amava como amava a Omar Khayyam desde a adolescência; como amava a Castro Alves, a Cecília... Quanto mais eu cresço, mais a lista dos meus amantes cresce. Cheguei a 1,60, porém continuo crescendo - agora - por dentro.
Finalmente, anos depois, uma vitrine de livraria chamou o meu nome. Entrei e abracei o poema-postal de Damário que até hoje enfeita o meu espaço. A sorte continuou me sorrindo e tive a felicidade de roubar da amiga, Baísa Nora, o livro Todo Risco - o ofício da paixão, que Damário Dacruz havia autografado para ela. Roubei, confesso. Ela sabia do meu amor e sempre soube do meu roubo. Criatura generosa e admirável essa minha amiga.
Encontrei esta delicadeza dentro do livro:
Ô DICASA
A poesia
não pede passagem.
Entra
pelo canto da porta
como os pequenos ventos,
ocupando os espaços da casa.
O difícil
é achar gente
dentro de casa.
Mais um tesouro:
TAPA DE LUVA
Os animais
e
as flores silvestres
reunidos decidiram:
O
Homem
não merece
ser
extinto.
Ligo a TV agora à noite e a tristeza me invade. Damário foi pro céu. Corro para o espaço que abriga os meus tesouros e a alegria brilha em mim. Na parede o meu Todo Risco me consola. Pego o celular e fotografo para postar aqui. Na estante o livro roubado me acena e diz sobre a certeza de que não somos pássaros e que voamos. O livro cria asas e vejo Damário voando, agora livre, entre nós, entre o Céu e a Terra. Lembranças a Deus, meu amigo... por favor, aceite este poema que lhe dedico:
viver
é ir ficando toda hora
antes de ir embora
para sempre
(até que reencarne)
11 comentários:
Bela homenágem a seu amigo Damário da Cruz. Voltou para O PAI.
Vou postar o poema "Tapa de Luva" no meu Blog junto a uma telinha que pintei para meu neto. Acho que a tela, fala o poema.
Abraços.
oi Amada...
que coisa triste, mas nós sabemos que necessária.
quanto beleza nas suas palavras, estão elas envoltas em um cristal precioso pelo qual somente os espíritos podem passar e tocá-las.
caramba.
fiquei emocionado aqui.
fiz uma prece.
ele deve estar bem, com certeza.
talvez renasça cachoeira.
na Bahia, é claro.
bjos.w
Linda mensagem, só poetas com a alma transparente conseguem tocar o intimo. Percebo uma semelhança na história de Damário,quanho há pouco mais de 5 anos me deparei com Neuzamaria Kerner, que imediatamente me encantou e contribuiu para a minha formação profissional.
Me desculpa a liberdade, AMIGA, o meu muito obrigado.
Helton Carvalho
Olá professora Neuza Maria, quanta honra...
Lendo a sua dedicatória, assim como diz o Digníssimo Damário, voei, mas voei para um terreno conhecido, firme em minha memória, e diante das suas palavras, pude ouvir você falando como em sala de aula, pude receber com eterna gratidão, novamente o brilho do seu olhar, relembrar a incandescência da sua alma e mais uma vez contagiar-me com sua imensa alegria... Parabéns Professora mais Amada, você é para mim, um exemplo de ser humano! Muita saúde e paz, para condicionar muitas amizades angariar soldados e unir-los por um mundo mais justo e feliz!
Saudações do seu Aluno Krdin (amado) xD
Super Bjo cheio de saudades!
Muito lindo o seu blog. É por isso que eu sou sempre seu fã. Vou acompanhar os posts e divulgar. Beijo e sucesso.
Neuza, visitei seu Blog.
Fiquei encantada com a grandeza da sua sensibilidade. Não sou Poeta, mas admiro pessoas como você que consegue expressar com tanta clareza as percepções e sentimentos.
Abraços fraternos,
Mary
Olá "Amada", quanta honra é vc me convidar pra vir aqui, lindo o que escreveu!!!
Como sempre, sabias palavras!
A vida é assim mesmo...
Muitas saudades de vc em "amada"
Bjo!
Do JR Vocal
O poeta parte para o amor total, o poeta parte para o amor de Deus!
Beijos, Neuza!
A primeira coisa que me veio à mente, depois de receber a trágica notícia do desaparecimento de Damário, foi a do quadro que você, Neuzamar, guarda em casa. E o poema marcou muito mesmo a nós todos.
Com a partida do poeta, senti uma tristeza como se um amigo íntimo estivesse indo embora. Todo risco é de um acerto sem par!
Beijos!
A poesia é sempre um sonho. Límpido e perfeito. Não conhecia o Damário Dacruz. Mas gostei. Especialmente do poema "Todo risco".
Um abraço fraterno.
"A possibilidade
de arriscar
é que nos faz homens.
Vôo perfeito
no espaço que criamos.
Ninguém decide
sobre os passos
que evitamos.
Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos.
Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos."
...........
Maravilhoso, mesmo, este poema de Damário! Encantador. E me faz pensar, de novo e mais, no encantamento e potência das palavras, da poesia, da arte...
Se te sentiste encantada, maravilhada e seduzida, tocada, naquele dia em que te deparaste pela primeira vez com este poema, hoje o trazes até aqui, como oferta a amigos e leitores, como homenagem ao poeta que partiu, como propagadora de sua arte e palavra, de seu encantamento. Como multiplicadora do maravilhamento!
Lindo, tudo, e me emociono e suspiro, com gratidão e prazer por sentir a arte pulsando, vibrando, perpetuando-se pelo planeta azulado, seja em caminhos virtuais, ou pelas ruas, pelas páginas e almas...
Abraços alados, linda e querida Neuzamaria!
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