Não era tristeza, não era dor, não era doença. Era um sentimento incômodo, uma coisa que vinha de dentro que o deixava desanimado e, por várias vezes, mais do que desânimo, entrava quase que num estado de prostração por dias a fio. Era aquela vontade de nada: nem de morrer nem de viver, nem de dormir nem de acordar, nem de comer nem... Pensava quando tinha disposição ou quando o pensamento criava vontade própria e se instalava, sem pedir licença, na mente desgovernada. No que pensava mesmo? Talvez na dureza da vida. Vida. Tão boa para uns, tão ingrata ou indiferente para outros. Era ruindade o que a vida estava fazendo a ele. Ruindade da pior. E a vergonha de pedir ajuda aos vizinhos ou aos parentes? "É um vagabundo preguiçoso que dorme o dia todo e nem sai do barraco para procurar o que fazer". Era isso que ouvia pelas frestas das tábuas. "Não sou vagabundo, só estou desafortunado. Deve ser culpa da crise de fora e de dentro. É o sistema". Pensava.
Vida é feminino. Pobreza é feminino. Alegria é feminino. Mulher é feminino. Por isso nunca se dera bem com o feminino até para amar. Gostar do masculino não era defeito. Disso tinha consciência, mas naquela situação nem amigo arranjava para desabafos ou desafogos. Dormiu pensando em um que tivera, mas o abandonara assim que a necessidade - também feminino - bateu à porta. Esse abandono doeu mais do que a pobreza em que estava vivendo desde que se entendia por gente.
Sonhousonhousonhounoiteinteira. Cachorro, cavalo, boi, jacaré habitaram seus sonhos. Lutou com todos, ficou todo lanhado e saiu vencedor. Acordou até cansado de tanta batalha - pelo menos os bichos eram machos. De repente o dia e o pensamento - ambos masculinos - trouxeram uma ideia: tabela dos animais do jogo de bicho. Trocados contados. Força criada, embora os tremores de uma barriga vazia. Foi à lotérica. Apostou. Ousou. Acrescentou o 24 na mega mesmo sabendo que, se não desse certo, estaria zerado provavelmente para sempre amém.
Bingo!!!
Como por encanto aquela coisa inexplicável que lhe sufocava a alma e as vontades desapareceu. Meio zonzo com a mudança da sorte, sem saber ainda para onde ir, voltou ao barraco e lá estava aboletado no colchão de capim que lhe servira de cama, o carinha. Aquele mesmo que na hora do deus-me-acuda sumira. Olhou no fundo dos olhos do deitado e ia abrindo a boca para dizer qualquer coisa... Não valia a pena. Virou as costas para aquele passado e saiu pela rua para ser acolhido pelo novo Dia, bem masculino e com D maiúsculo.
Olhar pra trás... jamais! - pronunciou do jeito francês.
p.s. texto escrito em casa... sem ter absolutamente nada pra fazer.
p.s.2. e viva Mariá Pinkusfeld!